"Você está aqui pela nostalgia, você é um turista da sua própria juventude.” – Sick Boy (Simon)
Em 2013, quando o diretor britânico Danny Boyle anunciou que estaria planejando fazer uma sequência do clássico da contracultura “Trainspotting”, a notícia reascendeu chamas e despertou paixões, o que se viu foi um alvoroço de fãs do filme original, clamando pelo novo longa. Não foi uma espera curta, quatro anos depois o filme estreou nos cinemas de todo o mundo, alimentando não só a nostalgia dos fãs do filme de 1996, mas também refletindo esse mesmo sentimento nos personagens, já consagrados na década de noventa.
Em 1996, Trainspotting foi a síntese, como nenhum outro filme, da era do videoclipe, ele possuía em si um teor de lisergia em sequências inesquecíveis com músicas perfeitamente selecionadas. Seus personagens carismáticos e seu conteúdo politicamente muito incorreto de rebeldia juvenil e uso de drogas viraram símbolos. Razões essas que fizeram o filme marcar época e se tornar um clássico de uma geração.
O roteiro indicado ao Oscar de John Hodge segue um grupo de viciados em heroína em uma área economicamente deprimida de Edimburgo e sua passagem pela vida. Além do vício em drogas, outros temas do filme incluem uma exploração da pobreza e miséria urbana em Edimburgo. O filme foi classificado pelo British Film Institute em décimo lugar em sua lista dos 100 melhores filmes britânicos do século XX. Em 2004, o filme foi eleito o melhor filme escocês de todos os tempos em uma votação pública geral.
Sinopse: Primeiro foi a oportunidade, depois a traição. Vinte anos se passaram e muita coisa mudou, mas outras tantas não. Mark Renton volta para o único lugar que ele consegue chamar de casa. Spud, Sick Boy e Begbie estão esperando por ele. Ewan McGregor, Ewen Bremmer, Jonny Lee Miller e Robert Carlyle reprisam seus papéis do classico britânico e se juntam à Anjela Nedyalkova no papel de Veronika em mais uma adaptação do escritor escocês Irvine Welsh. Dessa vez, de “Porno”, continuação direta do romance “Trainspotting”.
T2 – Trainspotting já era esperado há anos pelos fãs do filme original. O marco da contracultura “noventista” deixou pessoas do mundo todo ávidas por uma continuação, para saber o que havia acontecido com Mark Renton, após trair seus amigos e fugir. Danny Boyle, muito engenhoso, auto conscientemente parece ter convertido a nostalgia dos órfãos do primeiro filme na temática da sequência. Confuso? Não seja por isso. Logo nos primeiros minutos é apresentado ao expectador uma ferramenta que será constantemente utilizada pelo realizador, sinalizações e manifestações do passado.
Durante todo o filme a tela é bombardeada de flashbacks, imagens do primeiro filme, referências culturais e fotos/vídeos que mostram os personagens quando crianças. Mas não só em nível imagético Boyle opera para evocar o sentimento, a montagem tem um papel fundamental nisso. Por diversas vezes o trabalho de edição se assemelha à estética estabelecida pelos videoclipes do final dos anos oitenta, cortes rápidos, ângulos absurdos, planos holandeses (marca registrada do diretor) e tudo isso ao som de músicas que poderiam facilmente ter estado no topo das paradas da antiga MTV.
Essas sombras do passado, que ficam nas paredes como fantasmas, se manifestam também nas situações em que Mark, Francis, Daniel e Simon (anteriormente Rent-Boy, Begbie, Spud e Sick-Boy, respectivamente) são apresentados pelo roteiro. Em dado momento vemos um dos personagens, que ficou fora do país por algum tempo, revivendo suas manias e seus interesses em seu antigo quarto na casa de seus pais. As interações sempre acabam girando entre o que foi e o que passou. Em algum momento uma personagem, a única perspectiva externa de toda essa nostalgia, alerta que de onde ela vem, o passado foi feito para ser esquecido.
O presente também, ironicamente, se faz presente no longa. Por diversas vezes essa carga de memórias é brilhantemente mesclada com sinalizações de que o futuro já chegou e o tempo está sim passando, mesmo que sem ser percebido. As consequências das atitudes tomadas pelo bando no filme anterior são discutidas pelo roteiro. Desemprego, doenças cardíacas e outros problemas de saúde, cadeia e esquemas de prostituição foram o legado desses homens para si mesmos. Essas problemáticas são o tempo todo confrontadas com os quatro amigos.
Apesar de seus olhos parecerem não querer encarar essa realidade, o passado passou. Para marcar esses novos tempos, Boyle faz da montagem, do roteiro e da cinematografia, as suas ferramentas. GoPros, câmeras de celular e efeitos de Snapchat são utilizados como plataformas para discussões sobre redes sociais e internet banking no longa de 2017.
Essa nova realidade é sintetizada na renovação da famosa fala de Mark Renton no primeiro filme, a famosa passagem “Escolha a vida”. Aqui ela é não só completamente reformulada e atualizada, como também se torna autoconsciente de sua importância, tentando assim passar uma mensagem um pouco menos niilista para o público. Os quatro amigos se sentem aparentemente intimidados com os novos tempos em que vivem, eles já não dominam o sistema, o mundo os superou, eles ficaram para trás. Essa verdade é dura e em algum momento eles teriam que fazer as pazes com ela e tentar seguir em frente.
Sim, aparentemente o filme se debruça nas lembranças para poder encontrar sentido e sequência para a história original. Essa dependência do sentimento nostálgico do espectador para fazer sentido encaixota T2 – Trainspotting no nicho de fãs do primeiro filme, e em meio àqueles que ainda se lembram do que assistiram em noventa e seis. Isso cria não só a necessidade de que os “mais novos” assistam o original antes de encarar este, mas também reforça uma aparente “corrente” do cinema contemporâneo mainstream que é apelar para a memória afetiva do espectador. Trazendo sempre referências à filmes antigos, ou mesmo os refazendo.
Essa ideia não aparenta ser de todo o mal, a proposta inicial de Danny Boyle e do filme como um todo parece ter sido justamente essa. Refletir exaustivamente sobre o passado e confrontá-lo com o futuro em uma caixa de espelhos. Ao final o que se tira é óbvio: tentar se desprender do que já foi e usar de plataforma para seguir em frente. Essa premissa é simbolicamente interpretada por Spud, personagem caricato e usado de alívio cômico no primeiro filme. Aqui ele é usado como o fio condutor principal dessa trama, ele é o guardião de tudo o que aconteceu, cabendo à ele, dar o primeiro passo em direção ao futuro.
Ao final das contas Boyle conseguiu exatamente o que queria: deu aos fãs sedentos uma belíssima continuação; aos desavisados, uma lição muito bem executada sobre se prender ao passado; e aos que foram espertos, e viram o primeiro filme logo antes de ir ver o segundo, uma aula sobre estilo e forma cinematográficos. T2 – Trainspotting funciona não só como uma carta de amor ao filme de noventa e seis, mas também um aviso aos navegantes: que a nostalgia pelo passado pode te impedir de crescer, mesmo que seja muito gostoso viver nele ou revisitá-lo de vez em quando. Um puxão de orelha do Titio Danny Boyle? Talvez. No final das contas, é melhor que se escolha a vida.
Escrito por Gabriel Pinheiro
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