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Por que alguns filmes não passam no teste Bechdel e nós passamos pano?

O teste Bechdel surgiu na história em quadrinhos Dykes to Watch Out For de Alison Bechdel em 1985. Ele é uma ferramenta para mensurar a representatividade de personagens femininas em obras cinematográficas (e literárias). Para passar no teste o filme precisa cumprir 3 requisitos:


1) Deve ter pelo menos duas mulheres com nomes;

2) elas devem conversar uma com a outra;

3) o assunto dessa conversa deve ser qualquer coisa que não gire em torno de um homem e/ou interesse romântico.


Básico, não? O teste Bechdel procura estabelecer o mínimo necessário para que haja representatividade feminina na obra. Afinal, não é pedir demais por duas mulheres com nomes e não um título qualquer nos créditos como Garota nº1 e Garota nº2 e, pensando em retratar mulheres, nada mais comum do que uma conversa corriqueira entre elas.


Porém, vários dos nossos queridinhos não passam no teste. Panos preparados? Para manter uma tradição minha e do João inaugurada no episódio #39 do podcast do Querido Cinéfilo, vamos começar com Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004) dirigido por Michel Gondry e roteirizado por Charlie Kaufman.


Brilho Eterno acompanha Joel (Jim Carrey) após o término categórico com sua namorada "manic pixie dream girl" Clementine (Kate Winslet). Com um roteiro fragmentado que pula entre o passado e o presente, o inconsciente e a realidade, o espectador testemunha a tentativa de Joel de esquecer Clementine como ela fez com ele, usando uma tecnologia que permite apagar pedaços específicos da memória.


Há ainda um sub-enredo que gira em torno dos funcionários do local que fazem esse processo de apagamento, focando também em seus envolvimentos românticos e nas complicações oriundas desse tipo de relação - Kaufman não tem uma visão muito positiva do amor.

Segundo o site bechdeltest.com e minha memória (a qual não pretendo apagar), Brilho Eterno falha no 3º requisito do teste Bechdel. Apesar de ter duas mulheres com nomes, Mary (Kirsten Dunst) e a Hollis Mierzwiak (Deirdre O’Connell), e elas conversarem, o assunto é acerca do próprio Dr. Mierzwiak (Tom Wilkinson). Pode-se argumentar, contudo, que se tratando de um romance é esperado que as conversas se voltem para interesses românticos. Entretanto, uma única linha de diálogo bastava para que Brilho Eterno fosse aprovado no teste, como foi seu primo Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010).

Surpreendentemente, Scott Pilgrim ganha selo Bechdel positivo e conta com mais de um diálogo entre personagens femininas nomeadas que, olhe só, não falam sobre o Scott. Knives (Ellen Wong) e Tamara (Chantelle Chung) conversam sobre a Ramona (Mary Elizabeth Winstead) e sobre pintar o cabelo. E, se basta uma fala de cada uma das mulheres para passar no teste Bechdel, Knives pergunta para Kim (Alison Pill) se ela é bateirista e Kim responde um monossilábico “sim”. Scott Pilgrim também é um romance.


Que tal outro do Kaufman? Essa é a vez de Anomalisa (2015) co-dirigido por Duke Johnson. Esse filme traz a história de Michael Stone (David Thewlis), um palestrante motivacional que perde a própria motivação. Sua vida lhe parece monótona, sua esposa se importa unicamente com o filho, este só liga para presentes; para completar, Michael está hospedado na mesma cidade em que mora sua ex, um antigo relacionamento intenso e fracassado. A cereja do bolo é que todos os personagens têm a mesma voz, juntos numa mesma massa de nada. Todos exceto Lisa (Jennifer Jason Leigh).

Imagine uma personagem insegura. Mais. Bem mais. Mais um pouco. Agora sim, essa é Lisa, delicada, de riso fácil e encantada em conhecer seu ídolo: Michael. Ele a descobre após um desastroso reencontro com sua ex, quando sai batendo nas portas dos quartos do hotel e Lisa, uma fã que está ali justamente para assistir a palestra de Stone, aparece de roupão. Michael convida-a e a sua amiga de trabalho para um drink e, no fim, Lisa vai com ele para o quarto.


É uma história de fã, talvez similiar aquela que Justin Bieber eternizou no Brasil antes do casamento com Hailey Baldwin. Mas em Anomalisa, diferentemente dessa polêmica, Lisa é especial porque sua insegurança permite que Michael a descubra, qualquer gesto mais gentil e ela se entrega, porque não está acostumada com isso e está sedenta por afeto.


Tudo bem, essa é apenas uma personagem de Anomalisa, devem ter outras, certo? Certo, mas vou adiantar: o filme peca, também, no requisito 3 do teste Bechdel. Apesar de existirem duas personagens femininas nomeadas e elas conversarem entre si (se é que as conversas de fãs contam nesse contexto), o assunto é sempre Michael. Isso porque Anomalisa não é sobre Lisa como o título pode sugerir, é sobre a saga melancólica de Michael que não encontra mais sentido na vida.


Homem de meia idade, crise de meia idade, hotel, traição e melancolia... Estamos falando de Encontros e Desencontros (2003)? Poderíamos. Na verdade, o filme de Sofia Coppola aponta uma brecha no teste Bechdel. Charlotte (Scarlett Johansson) e Kelly (Anna Farias) fazem o famoso "small talk". A tensão da cena se concentra na própria tensão que existe entre Kelly e o marido de Charlotte, porém ele não é o assunto, as duas conversam sobre outro tópico para não recaírem nesse ponto de desconforto.

Mas, mesmo passando no teste Bechdel, será que Encontros e Desencontros tem uma boa representatividade feminina? Segundo o teste Makomori não. Nele o filme deve atender as seguintes condições:


1) Deve ter pelo menos uma personagem feminina;

2) essa personagem deve ter o próprio arco narrativo;

3) esse arco não deve se apoiar no percurso narrativo de um homem.


Enquanto Charlotte marca positivo no 1 e no 2, seu arco narrativo ora inclina-se para Bob (Bill Murray), ora para o marido. Ou seja, Encontros e Desencontros confirma que o teste Bechdel trabalha com o mínimo e mesmo que um filme cumpra os 3 pontos, ele ainda pode ser fraco quanto à representatividade.


Enfim, a derradeira pergunta: por que isso importa? Segurem seus panos, não está na hora da faxina! É entendido que o cinema é um dispositivo cultural que tanto retrata quanto auxilia a formar a cultura de uma sociedade. Se pensarmos de uma perspectiva mais acadêmica, podemos citar Sidney Leite quando ele diz que: “A cultura de mídia fornece material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e raça, de nacionalidade, de sexualidade, de nós e eles.”


Essa colocação do “nós e eles” lembra o defendido por Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo quando ela afirma que a mulher é o "outro do homem que é o sujeito, o eu". Isso significa que a mulher, tanto para ela mesma quanto para a sociedade, está abaixo do homem, ela sempre é, em comparação com ele, "o outro", nunca o sujeito principal.


O que os filmes citados fazem é perpetuar essa concepção da mulher como esse "outro", uma figura dependente, idealizada segundo o olhar masculino e, muitas vezes, bastante estereotipada como é o caso de Lisa.


Então não podem mais fazer histórias sobre homens e seus dramas? Longe disso. O defendido pelo teste Bechdel, Makomori, pelos ativismos e movimentos igualitários é que mesmo que o enredo se concentre numa figura masculina, a representação da mulher não seja comprometida por causa disso. A mulher não é, nem na realidade e nem deve ser na ficção, um pilar de sustentação para a história do homem.


Perceber isso é importante porque o cinema ajuda o público a formular sua concepção de mundo, como afirma Leite, e a desconstrução dos preconceitos e estigmas é fundamental para educar o espectador a pensar no gênero de uma maneira mais realista, sem subordinar uma figura a outra, entendendo a individualidade existente em cada um. Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças pode continuar sendo seu filme favorito, Encontros e Desencontros ainda pode ter te impactado, isso é válido, o que não é válido é passar pano.


Escrito por Giovana Pedrilho


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