Pode ser que temas “transgressores” tenham se tornado mais comuns dentro das mídias de comunicação. É verdade que o cinema mainstream se adaptou a inserir discussões sociais em pauta na atualidade. Filmes como Vingadores: Guerra Infinita tem suas frases de efeito para as personagens femininas e se esforçam cada vez mais em retratar um sentimento de união entre as mulheres, investindo, inclusive, em filmes solo das heroínas, as quais até a década passada, os anos 2010, ainda eram bastante coadjuvantes em comparação com os heróis que sempre contaram com seus próprios longas-metragens.
Mas isso, é óbvio, não vem de hoje, muito menos do século XXI. Afinal, o cinema não nasceu ontem e nem as lutas sociais. Mesmo que hoje certas pautas sociais tenham perdido um pouco essa roupagem “transgressora” e ganhado uma nova imagem progressista à visão da sociedade, alguns filmes tiveram que ser transgressores para que se chegasse à fatídica cena de Guerra Infinita onde a Feiticeira Escarlate é nocauteada apenas para aparecerem a Viúva Negra e Okoye para dizer que “ela não está sozinha” na luta.
E que tal dar uma olhada num dos gêneros que mais abordam metáforas sociais? Isso mesmo, estamos falando do terror, com suas sutis – ou nem tanto assim – metáforas do mal que retratam ansiedades das sociedades de sua época, como um Expressionismo Alemão fez uma vez com o sentimento nacional de derrota após a Primeira Guerra Mundial ou os slashers encararam um mundo de embate entre a liberdade sexual e a moralidade.
Então, vamos voltar um pouco no tempo. Em 1962, em plena jurisdição do Código Hays – código de censura cinematográfica que aplicava a moral aos filmes produzidos pelos estúdios estadunidenses –, O Parque Macabro (Carnival of Souls) despontou com um discurso bastante feminista.
O filme acompanha Mary, uma tocadora de órgão profissional que perde duas amigas em um racha – isso mesmo, um racha, uma corrida ilegal – apostado contra alguns moços. Eles não ficam nem um pouco felizes em estarem perdendo, ou pelo menos empatando, para elas e começam a bater na lateral do carro, fazendo com que a motorista perca o equilíbrio e caia de uma ponte diretamente em um rio.
Mary é a única sobrevivente. Ela decide deixar a cidade, encontra um emprego em outro lugar para tocar órgão em uma igreja. Ela é uma pessoa resoluta e firme, não olha para trás, para aquela vida que deixa e também deixa claro que não pretende tomar os votos da igreja, encara aquilo apenas como um trabalho. Claramente que a estranham por isso, perguntando repetidas vezes se ela não se sente culpada. E, na verdade, não, ela não se sente. O que a atormenta é outra coisa, ou melhor, outros.
Ela passa a ver o fantasma de um homem – que, diga-se de passagem, lembra muito a caracterização em Beetlejuice (1988) – que a atormenta incessantemente, principalmente à noite. Mary acredita que ele esteja associado a um pavilhão abandonado na beira da praia dessa nova cidade, onde havia um parque de diversões.
Porém, apesar de essa ser sua principal perturbação, há outras. O assédio de seu vizinho é constante e, mesmo deixando claro que ela não tem interesse em namorar com ninguém (está muito bem sozinha, obrigada), ele continua insistindo até que ela, aterrorizada pela perspectiva de se encontrar novamente com aquele fantasma, aceita as investidas.
Aqui chega de spoilers. Era preciso contextualizar tudo isso para dizer: Mary se vê cercada por figuras masculinas hostis, as primeiras, os homens do racha, provocam a morte de suas duas amigas, atirando-as da ponte, a segunda, o fantasma, persegue-a, causando-lhe delírios – que, com certeza, tem um outro significado que deixo que você, leitor, descubra assistindo ao filme –, a terceira, o vizinho, assedia-a, e a quarta, o médico, toma-a como histérica.
O verdadeiro vilão, como nosso querido João Cardoso comentou comigo antes que eu escrevesse esse texto, são homens que atuam mal e que ficam constantemente forçando Mary em situações desconfortáveis. O Parque Macabro é um dos vários exemplos de como o espectro do feminismo “assombrava” o cinema há muito mais tempo do que os novos filmes com o tema nos fazem acreditar. A luta social é, afinal de contas, uma herança em progressivo desabrochar, tomando a passos, ora lentos, ora rápidos, o seu devido lugar de fala.
Escrito por Giovana Pedrilho
Comments