Em todo o mundo a partir do final da década de 1950 diversos novos movimentos cinematográficos ligados com uma juventude que estavam produzindo novas ideias e novas formas de se fazer filmes. Esse foi o caso em diversas cinematografias, como a francesa, tcheca, brasileira, egípcia, só para citar algumas. No Japão não foi diferente, a Nuberu Bagu (pronúncia japonesa de Nouvelle Vague) foi um importante e criativo movimento artístico que tem grandes influências no cinema até os dias atuais.
Diferente de outros movimentos que aconteciam ao mesmo tempo em outras partes do mundo a Nuberu Bagu nunca teve uma união política ou filosófica, nunca foi lançado nenhum manifesto da Nuberu Bagu. Mas sim foi uma eclosão de diversos cineastas com a vontade de filmar e discutir os problemas da sociedade japonesa como um todo.
O caldeirão político japonês na década de 1950
Durante a década de 1950, o Japão viveu diversos momentos de grande insatisfação política popular, uma série de protestos organizados por grupos de esquerda levaram, entre outras coisas, ao sentimento necessário para a criação do movimento cinematográfico da Nuberu Bagu. Esses movimentos moldaram o pensamento dos novos cineastas e são de extrema importância para o entendimento estilístico do cinema no período que segue.
Após o fim da segunda guerra mundial, os Estados Unidos invadem o Japão militarmente, tomando o controle tanto no âmbito político quanto social. Entre outras imposições, foi outorgada uma lei seca que foi vigente durante todo o período, caso relatado no filme de 1948 de Akira Kurosawa, Anjo Embriagado (Yoidore tenshi). Em 1951 ambos os países assinaram um tratado mútuo de segurança fazendo assim, que os Estados Unidos e o Japão se tornassem aliados pela primeira vez na história. O tratado dava maior autonomia para o governo local na gestão de sua pátria, mas em contrapartida o Japão não poderia ter um exército e deveria ter espaço para bases militares estadunidenses em solo japonês. Entre as diversas medidas havia uma que determinava o tratado seria revisto a cada dez anos.
Além disso uma forte onda de controle do conhecimento voltava a surgir. De forma que qualquer discussão acerca do papel do Japão na guerra que não colocasse o país como vítimas e reféns de um governo autoritário, ou que questionassem a não responsabilização do imperador Hirohito, não fossem possíveis. Havia uma censura sistêmica vinda do ministério da educação em que controlava quais informações poderiam ou não aparecer nos livros escolares. Quaisquer retrato diferente de que tanto o imperador quanto o exército haviam sido controlados por uma minoria extremista que já não mais existia no país era considerado subversivo e dessa forma proibido.Nesse contexto, grupos de esquerda começaram a surgir e se fortalecer, unindo-se em manifestações com o intuito de demonstrar um descontentamento geral com a política japonesa. Entre esses grupos estavam o Partido Comunista Japonês, o Partido Socialista Japonês, ambos há pouco haviam sido refundados e já ganhavam força, as uniões sindicais, os intelectuais de esquerda e, talvez o grupo mais importante para a as artes na década que viria a seguir, a união estudantil nacional, a Zengakuren, grupo no qual vários dos, na época, futuros diretores da Nuberu Bagu, participavam.
Entre os anos de 1952 e 1955, os protestos se diversificaram entre atos nas universidades (principalmente a Universidade de Tóquio) e protestos nas ruas, até tentativas de invasão ao palácio imperial e a bases militares estadunidenses em solo nipônico, esses últimos com confrontos diretos com a polícia. Após 1955, “[a] ascensão espetacular no padrão de vida no Japão levou a uma diminuição dos protestos sindicais, enquanto protestos estudantis eram igualmente suspensos.” (Desser, 1988, p. 33, tradução própria). No entanto, entre 1959 e 1960 os protestos retornaram e dessa vez com mais força e maiores consequências. Isso se deu, principalmente, pela proximidade pela data do renovamento do tratado de segurança. Acerca desses novos protestos Desser escreve:
É possível argumentar que, sem o envolvimento de Zengakuren, os protestos da Ampo nunca teriam atingido tal pico. E é possível que, sem a presença de Zengakuren, o Ampo 1960 poderia não ter tido um impacto tão grande nas artes. Pois levou não apenas a mobilização massiva de organizações que representavam uma ampla variedade de grupos sociais a criar um sentimento de frustração e traição gerada quando os protestos fracassaram, mas um sentimento de traição dos jovens, um sentimento de que a nova geração do Japão seria controlada e tão oprimido como nos anos 30, para promover uma alienação e uma rebelião da corrente principal da sociedade. E essa rebelião por parte dos jovens japoneses tentaria ser uma ruptura quase completa do passado, uma ruptura não tem ressentimentos apenas da Velha Direita que reinou no Japão novamente, mas da Velha Esquerda, que não conseguiu impedir esse retorno [...] (Desser, 1988, p.33, tradução própria)
Estes protestos seguiram, mesmo após a renovação do tratado ter sido assinada. Os estudantes, que já haviam se separado do resto da frente de esquerda, realizavam protestos maiores e com mais confrontos com a polícia. Esses chegaram no seu ápice em junho de 1960 quando uma manifestação em frente ao congresso japonês se transformou em uma invasão que durou horas, culminando em centenas de feridos e com a morte de uma estudante da Universidade de Tóquio, Kamba Michiko de 22 anos, mas o sentimento amargo deixado pelos movimentos nos jovens foi rapidamente levado às telas de cinema.
Todo esse complexo caldeirão político influenciou diretamente as artes a partir da década de 1960. Em todos os campos artísticos novas formas surgiram de forma que se questionasse o que se havia feito antes, criando novas estéticas que coexistiam em uma importação de ideias estrangeiras, principalmente de vanguardas europeias, e da cultura clássica japonesa. Assim criando linguagens únicas e extremamente autorais.
A Nuberu Bagu
Os jovens participantes dos protestos do início da década de 1950 acabaram se formando nas universidades e partindo para o mercado de trabalho, levando essas ideias de revolução para fora do campo acadêmico, inclusive para o cinema. O cinema japonês sempre foi produzido nos estúdios e principalmente nos cinco principais, Shochiku, Toei, Nikkatsu, Toho e Daiei. Essas empresas dominavam desde a produção até a distribuição e tinham um rígido sistema que pouco permitia que jovens assumissem a direção dos filmes, mas que passassem anos como assistentes.
No entanto, depois de mais de uma década praticamente parada, a Nikkatsu, volta a produzir filmes na metade dos anos 1950, com um início com pouco dinheiro para as produções rapidamente diretores jovens e com pouca experiência ganharam a oportunidade de dirigir seus filmes. Esses filmes tinham um contido apelo sexual e violento, mas que para a época já se tornava novidade. Esses filmes tiveram sucesso comercial, firmando novamente a Nikkatsu no mercado e levando que logo outros estúdios começaram a lançar também novos diretores com o intuito de lucrar com esse mercado jovem.
Entre esses estúdios estava a Shochiku, que promoveu três de seus assistentes para a posição de diretor, eram eles Nagisa Oshima, Yoshishige Yoshida e Masahiro Shinoda. Oshima foi o primeiro a se destacar, com filmes políticos e que levavam em consideração os protestos da época, ele conseguiu tocar todo um grupo jovem que precisava sentir que suas ações estavam fazendo algum efeito na sociedade. Em seus três filmes lançados em 1960, Oshima toma o tema da juventude alienada e rebelde de forma que revolucionou o cinema japonês.
Em Conto Cruel da Juventude (Seishun zankoku monogatari, 1960), o diretor filma os protestos da Anpo, e também apresenta personagens que estão desgostosos com a forma decadente de organização social baseada em aparências e em valores que não os servem. Em seu segundo filme do ano, O Túmulo do Sol (Taiyô no hakaba, 1960), Oshima leva o desgosto com as instituições e vontade de revolução dos jovens a um outro nível, agora estamos nas favelas de Osaka, em que os jovens se submetem a cometer diversos crimes para poder conseguir dinheiro, e seus pais mesmo que condenem e tentem controlar esses jovens, acabam cometendo delitos muito mais graves sem admitir serem questionados. Diferente do filme anterior nesse há uma espécie de “levante contra as instituições”. O filme aqui apresenta uma característica muito forte do diretor e que vai segui-lo por toda a sua filmografia, uma crítica e, pode-se dizer, pessimismo com a nação e povo japonês. Isso se demonstra no notar, que da mesma forma que nos protestos da Anpo, o sentimento revolucionário, as ações dos suas manifestações, podem ter mudado de alguma forma os indivíduos que participaram, mas no geral a sociedade continua da mesma forma.
Em seu último filme do ano de 1960, Noite e Neblina no Japão (Nihon no yoru to kiri), Oshima olha para a nova esquerda, que dominou os protestos do fim da década de 1950 e teme que eles terminem da mesma forma que os manifestantes do início da década, alienados pelo mundo profissional e doméstico, e cada vez mais próximos de serem o que criticavam. O filme marca seu rompimento com a Shochiku em decorrência da retirada do filme de cartaz. Noite e Neblina no Japão apresenta a maior quebra estilística com o passado cinematográfico do japão, há uma clara quebra com o naturalismo no filme, cenas que se apresentam como colagens em um fundo completamente escuro em que somente a ação e ocasionalmente narração cria os sentidos para o filme.
O termo Nouvelle Vague, foi dado por um crítico comparando Conto Cruel da Juventude, de Nagisa Oshima, com os filmes franceses do movimento com mesmo nome que estavam sendo produzidos na época. Assim a Shochiku, com o intuito de promover os filmes, passou a utilizar o termo para descrever os filmes produzidos pelos jovens diretores da companhia, chamando-os de Shochiku Nuberu Bagu.
Da mesma maneira que Oshima, outros diretores da Nuberu Bagu também aproveitaram do momento político para fazerem seus comentários sobre o Japão em seus filmes. Dentre os diretores que fizeram parte da Nuberu Bagu podem ser destacados: os já citados, Yoshishige Yoshida, Masahiro Shinoda, e também nomes como Hiroshi Teshigahara, Kaneto Shindo, Koji Wakamatsu, Seijun Suzuki, Shohei Imamura, Shuji Terayama, Susumu Hani, Yasuzo Masumura e o diretor de O Funeral das Rosas, Toshio Matsumoto, entre outros. Esses diretores, com a ideia de que deveriam se diferenciar da velha esquerda, criaram uma forma que rompesse com aquilo que havia sido feito antes, principalmente nos anos 1950, período que foi muito influenciado por Hollywood por causa da invasão estadunidense.O cinema deveria então quebrar com diversas das ideias estabelecidas anteriormente, assim permitindo uma maior gama de possibilidades imagéticas, sonoras e narrativas, para que um confronto com o Japão que se estabelecia fosse feito.
Além das temáticas políticas, outros assuntos foram de muita importância para o cinema da Nuberu Bagu, dentre eles podem ser destacados, a violência, o sexo, a figura feminina e a demonstração da manipulação. Esses temas estão presentes em todos os filmes do movimento, em grande parte das vezes sendo tratados todos de forma conjunta e como uma única coisa, a identidade do novo Japão que estava se consolidando.
Com um passado extremamente militarizado é de se esperar que a questão da violência seja muito trabalhado na cinematografia japonesa. Os filmes da Nuberu Bagu muitas vezes tratavam desse passado militarista e de uma sociedade que idealizava seus valores. Os 3 filmes do ano de 1960 de nagisa oshima apresenta claramente como mesmo após a guerra a sociedade não consegue se desvencilhar tanto da violência quanto da dominância entre os seus iguais. Além disso olhares acerca da violência como base da sociedade e da figura masculina são temas muito presentes nos filmes do principal diretor de violência da Nuberu Bagu, Seijun Suzuki. Em seu filme Elegia de Luta (Keika Ereji, 1966), o diretor mostra como que se dá a idealização do mundo militar, principalmente entre os jovens. Gangues escolares se formam e apresentam regras rígidas de como agir, se vestir, e de hierarquia. Algo que logo se torna uma guerra entre os grupos. O filme faz graça com a idealização do sentimento militar principalmente de seu personagem principal, Kiroku. Mas ao mesmo tempo mostra o quanto ele se afunda nesse universo e as perdas que ele tem em relação a quem está fora do mesmo. Ainda o filme brilhantemente demonstra como o problema da mistificação da violência, não é algo somente dos jovens, mas sim de uma figura masculina e que meandra a sociedade. Isso fica claro em certa cena em que após repreender Kiroku, o diretor de sua escola o desafia para uma acalorada luta de espadas de madeira. O impulso violento se demonstra tão absorvido pela sociedade que já não é mais algo necessariamente ruim, mas pode ser algo divertido, uma brincadeira.
A sexualidade é também outro ponto de forte importância para o cinema japonês da época. Nos anos 1950 a grande quantidade de nascimentos fez com que programas governamentais de prevenção de natalidade fossem criados. Isso junto às fortes censuras à genitálias feitas sob as artes, o tabu do sexo na sociedade e cultura mais sexualizada vinda principalmente dos Estados Unidos, criou um sentimento de fantasia em torno do sexo nos japoneses. Aliado a isso havia também um movimento internacional pela liberação sexual. Como em outros aspectos da sociedade japonesa o cinema da época rapidamente a esses anseios do povo. Para a Nuberu Bagu a exploração da sexualidade é algo positivo e importante para a liberdade individual.
Filmes como Introdução a Antropologia (Erogotoshi-tachi yori: Jinrukaigu nyûmon, Shohei Imamura, 1966), O Império dos Sentidos (Ai no korîda, Nagisa Oshima, 1976) e Eros + Massacre (Erosu purasu Gyakusatsu, Yoshishige Yoshida, 1969), isso claro sem falar de O Funeral das Rosas. Destaco o filme de Oshima, que provavelmente é seu filme mais famoso. O filme narra a história de Sada Abe, uma mulher que ficou famosa por asfixiar e arrancar penis e testiculos de seu amante. O filme se passa em maior parte no quarto de Sada e seu amante, enquanto eles praticam o ato sexual de forma ininterrupta. Pode se fazer uma leitura do filme em que o sexo ocupa o espaço de ato revolucionário que contraria o controle social dos corpos. Em seus escritos Oshima já havia comentado do seu pensamento acerca da importância do sexo como ato revolucionário:
‘Maior o labor do amor, mais esmagador é o seu desejo pela revolução. Quanto mais você se revolta, mais esmagador é o seu desejo de se engajar no labor do amor.’ Essa pichação, escrita em uma parede da Sorbonne durante a revolução de Maio, é uma expressão extremamente concreta disso. Em momentos como esse, a sexualidade de uma pessoa se conecta com toda a humanidade. Uma relação sexual com outro, elícita uma conexão com toda a humanidade: ao se abraçar com uma pessoa, você é capaz de abraçar toda a humanidade. (Oshima 1992, apud. Tinen, 2018, p.88, tradução de Tinen)
Fica claro a visão revolucionária que Oshima tinha em relação ao sexo, algo que vai permear todo o cinema da Nuberu Bagu. Havia “a necessidade de pensar o sexo em termos políticos, assim como a política em termos sexuais.” (Tinen, 2018, p.88)
Da mesma forma que os assuntos tratados anteriormente, a questão da mulher não é uma novidade no cinema japonês no período da Nuberu Bagu. Desde a introdução do cinema sonoro em solo japonês muitos dos filmes produzidos tinham como tema aspectos da vida feminina e/ou protagonistas femininas. Os filmes de Yasujiro Ozu, Mikio Naruse, Kenji Mizoguchi e Kanuyo Tanaka são grandes exemplos disso. No entanto com a modernização do Japão vinda com o pós-guerra, foram importadas também novas ideias sobre o papel da mulher na sociedade. Muitos dos cineastas da Nuberu Bagu exaltavam essa nova mulher com mais autonomia e liberdades.
Eros + Massacre se apresenta como uma biografia de um importante militante anarquista japonesa do início do século 20, Sakae Ôsugi, sua relação com três mulheres, Hori Yasuko, sua esposa e suas namoradas, Masaoka Itsuko, uma jornalista e Noe Itô, outra militante anarquista. Em paralelo a essa biografia, temos cenas no Japão contemporâneo em que dois jovens estudantes Eiko e Wada discutem teorias acerca do amor livre enquanto Eiko busca entender mais sobre uma das amantes de Ôsugi, Noe.
Em ambas histórias fica clara a vontade de ambas mulheres que as protagonizam de controlar suas próprias vidas, o que vão fazer com ela, e com quem vão passar. Noe Ito vive um casamento infeliz com um poeta, que se recusa a aceitar a modernidade que os rodeia e que Noe tanto anseia. O filme deixa claro que a negação da modernidade é impossível por mais que o marido de Noe tente. Ele passa os dias tocando um Hocchiku, uma espécie de flauta de bambu, enquanto um barulhento trem passa nos limites da propriedade do casal constantemente, trem que é considerado um grande marco da revolução industrial pelo mundo e que no período que essa parte do filme se passa estava no auge no Japão. Noe busca se libertar dessa estagnação e buscar sua própria liberdade. Ela começa entrando em um relacionamento com Ôsugi, o anarquista que defende ideias acerca do amor livre e dos múltiplos relacionamentos amorosos. Mas Noe percebe que Ôsugi também está estagnado em sua vida, sem dinheiro e dependendo de sua namorada, Masaoka para sobreviver, preso em uma vida que tampouco agrada Noe, o que a faz deixá-lo também.
Na parte contemporânea do filme seguimos Eika, que também busca uma liberdade que é negada pela sociedade que a cerca. Eika é muito interessada nas ideias de amor livre e na figura de Noe Ito. Ela busca ser independente e que não tenha que dar satisfações de com quem fica ou por que, no um policial que a persegue e a acusa de se prostituir. A figura do policial é a repressão a qualquer forma de relacionamento desviante do padrão heterossexual, cisgênero, monogâmico, que afeta de forma mais forte às mulheres. Eiko quer sair desse padrão, mas é pressionada para que não o faça, ela não cede a essa pressão e junto de Wada buscam entender mais as ideias revolucionárias tanto sobre o amor, quanto a outros aspectos da sociedade.
Por fim o último aspecto que pretendo abordar no momento é o da demonstração da manipulação, com isso quero dizer a enunciação que deixa clara a existência da manipulação do filme. Esse deixar clara a enunciação é uma ideia não única dos japoneses na época, mas sim algo que vinha surgindo pelo mundo com as Novas Ondas. Existem muitos casos de filmes que utilizam dessas ferramentas no mundo. Na frança em 1961, Jean-Luc Godard lançava seu segundo filme Uma Mulher é Uma Mulher (Une Femme est Une Femme) em filme existem cenas em que Angela, a personagem principal, dança no bar em que trabalha enquanto uma música toca, a música é retirada do filme e descobrimos que esta música na verdade é extra diegética, pois ainda ouvimos os sons de ela dançando e do bar, mas nenhuma música, e na famosa cena de diálogo entre Angela e seu namorado que as falas aparecem como letreiros por cima da imagem, sem que os atores falem nada. Outro exemplo vem do filme de Agnès Varda produzido nos Estados Unidos, O Amor dos Leões (Lions Love, 1969) que apresenta também essa demonstração da manipulação. Diversas vezes os personagens se dirigem à câmera para falar com o público, seja para fazer comentários, seja para explicar o que estão fazendo. Há também um brilhante momento em que Shirley Clarke (uma importante diretora do cenário independente de Nova York), atuando como si própria, se nega a fazer uma cena de suicídio. Sem que haja cortes, o filme mostra a suposta discussão entre a atriz e a diretora, até que, cansada das reclamações de Shirley, a própria Agnès entra em cena e atua a cena de suicídio para a câmera.
Na Nuberu Bagu filmes que admitiam a manipulação e também foram característicos. Um grande exemplo é Double Suicide (Shinjû: Ten no Amijima, Masahiro Shinoda, 1969). O filme é baseado em uma peça de 1721. A peça muito foi apresentada na forma de teatro bunraku, o teatro de bonecos. A primeira cena do filme mostra a preparação para uma apresentação da peça no estilo, enquanto uma voz, supostamente do diretor, conversa ao telefone sobre a feitura da cena final do duplo suicídio. Logo o filme se torna um jidaigeki clássico. Jihei, um comerciante de papel casado, se apaixona por Koharu, uma cortesã. Jihei promete comprar a liberdade de Koharu, no entanto nem mais controle de sua loja Jihei tem mais. O filme começa em uma representação naturalista próxima das vistas em Jidaigekis clássicos. No entanto em progressivamente kurokos[1], aparecem em cena interagindo com personagens objetos e cenários. Quando essas figuras entram em cena a representação muda, de algo naturalista, para algo muito estilizado, que lembra muito as formas clássicas do teatro japonês do kabuki.
Percebe-se no cinema da Nuberu Bagu certa visão de vida a partir de uma abordagem complexa, que busca alcançar os seus mais variados aspectos. Demonstrando sem pudor, a fragilidade de seus personagens, mas principalmente do mundo que o entorna, colocando-os tanto como vítimas do meio quanto alienados perpetuadores dos problemas que assolam o Japão. Existe um grande foco nas questões de identidade e de construção da mesma no cinema japonês da época. Essa identidade, no entanto, está longe de ser algo unificado e metódico, mas sim algo mais próximo do que Stuart Hall(2006) define como identidade pós-moderna. Ele diz que:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais "lá fora" e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as "necessidades" objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. (Hall, 2006, p.12)
Essa identidade pós-moderna e múltipla, que Hall descreve se mostra evidente no cinema jovem da Nuberu Bagu, uma multiplicidade de temas, tempos, vontades formas e sentimentos, sendo representados em tela ao mesmo tempo de forma conflitante e coesa. Da mesma forma como a geração de pessoas que se formava que via um Japão culturalmente diverso. Com aspectos europeus, americanos, asiáticos, comunistas e capitalistas, todos convivendo junto e construindo uma única e nova sociedade japonesa. Uma sociedade que já não podia mais de forma alguma negar o passado, mas que também precisava, e almejava, lidar com seu presente e futuro. Uma país que por muito tempo esteve fechado a influências externas agora, mais do que nunca, se tornava um importante centro econômico, tecnológico e cultural.
Referencias:
Eros + Massacre: an introduction to the japanese Nouvelle Vague. David Desser, 1988
Identidade na Pós-modernidade. Stuart Hall, 2006
Espaços e Masculinidades em Nagisa Oshima: Tabu e Furyo. Pedro De Araujo Nogueira Tinen, 2018
Subversão e resistência no Japão pós-guerra: Os filmes de Terayama Shūji. Larissa Lessa, 2018
[1] Kuroko é no teatro clássico um membro da equipe que aparece em cena como algo fora da narrativa, seja para mover objetos para mudança de cenário, seja para fazer sons de animais, ou no teatro bunraku são as figuras que movem os bonecos em cena.
Texto escrito por João Cardoso
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