“Há na história do cinema, um antes e um depois de Nuremberg, uma antes e um depois de Leni Riefenstahl.” – Cahiers Du Cinéma, Special 100 journées.
“Não me é fácil virar as costas ao presente e mergulhar no passado, tentando compreender a minha vida em toda a sua estranheza. Sinto-me como se tivesse vivido muitas vidas, experimentado os altos e baixos de cada uma delas, como as vagas do oceano, sem nunca ter descanso. Através dos anos, procurei sempre o invulgar, o maravilhoso, os mistérios no coração da vida”, afirmou a própria Riefenstahl. A mulher que ficou mundialmente conhecida como a cineasta de Adolf Hitler lutou até o fim para quebrar essa marca de seu passado.
Leni Riefenstahl (1902-2003) começou a estudar pintura e poesia ainda aos 4 anos de idade. Sua mãe lhe dava todo o apoio nas artes, sem o conhecimento do marido, sua mãe a matriculou em aulas de balé clássico na Escola de Dança Grimm-Reiter, em Berlim, e logo se tornaria uma estrela da companhia. Em uma entrevista em 2002 Riefenstahl lembrou que dançar era o que a fazia realmente feliz.
Quando teve de parar, ainda jovem, por causa de uma lesão no joelho, Leni assistiu a um filme no cinema e ficou impressionada com as possibilidades do meio cinematográfico, entrando em contato com um diretor para pedir um papel em um filme. A partir de então, ela estrelou vários filmes de montanha, filmando em externas na neve com pouca roupa, escalando montanhas íngremes descalça. Quando lhe ofereceram a oportunidade de dirigir A Luz Azul, ela aceitou. Seu interesse, a princípio, estava em filmes de ficção.
Proximidade com o Führer e “O Triunfo da Vontade”
De acordo com algumas fontes, Leni ouviu Adolf Hitler discursar num comício em 1932 e ofereceu a ele seus serviços como cineasta, porque teria ficado fascinada pelas habilidades oratórias do líder. Já outras, como a própria diretora, afirmam que ela é que foi procurada por Hitler, depois que este assistiu e adorou o filme A Luz Azul.
De todo modo, já em 1933 ela dirigiu um curta-metragem sobre um comício do Partido Nazista. Hitler, então, pediu a Leni que filmasse a convenção anual do Partido em Nuremberg em 1934. A princípio, ela se recusou, sugerindo que Hitler contratasse Walter Ruttmann para dirigi-lo em seu lugar. Mais tarde, Leni Riefenstahl voltou atrás e realizou O Triunfo da Vontade, um documentário em que teve grandes recursos financeiros e total liberdade criativa.
Conceição Pereira afirma que Leni “veiculou de forma magistral, não só a execrável ideologia nazista, como também, o hediondo mito da supremacia ariana. Contudo, não esqueçamos que ajudou a consolidar um sistema totalitário, assente na hegemonia de uma raça de mefistofélicas mentes. Desgraçadamente é, sem dúvida, um dos melhores, senão mesmo o melhor filme de propaganda jamais feito. Para a sua concretização, foram utilizados inéditos truques e artifícios, até então nunca vistos ou, sequer, imaginados.
Olympia, Hitler e os esportes
Em 1936, Leni Riefenstahl qualificou-se para representar a Alemanha no rali de esqui nos Jogos Olímpicos de 1936, mas, em vez disso, preferiu filmar o evento. O material captado virou o filme Olympia, celebrado por suas inovações técnicas e estéticas até hoje influentes em toda a cobertura esportiva da televisão. O filme ganhou os Prêmios de “Melhor Filme” nos Festivais de Cinema de Veneza e Lauzanne e ganhou Medalha de Ouro pelo Comitê Internacional Olímpico.
Já entronizada realizadora do regime, coube-lhe a tarefa de registrar, para a posteridade, os jogos da 11ª Olimpíada da era moderna, que ocorreram em Berlim entre os dias 1 e 16 de Agosto de 1936. Talentosa como poucos, levou a cabo um notável trabalho de concepção e montagem que, ainda hoje, é considerado uma obra-prima, no que diz respeito à estética das imagens desportivas.
Está cotado como um do melhores documentários cinematográficos sobre os esportes. Ao todo, durante as 129 provas dos jogos, foram filmadas, escolhidas e montadas quase 400 quilômetros de película. Inovações foram estabelecidas, como por exemplo, a colocação de câmeras em pontos estratégicos do estádio, as imagens colhidas em câmara lenta e a utilização de lentes de longo alcance e a inovadora lente de 60 mm.
De acordo com Kötzing, “os atletas são colocados em cena por ela na condição de ideais. Desde então, a apresentação do corpo atlético adquiriu um viés de propaganda e se tornou o ideal moderno de beleza. Olympia glorifica a Alemanha nazista como herança da Grécia Antiga, tanto do ponto de vista estético quanto político. A acentuação do estético – do ideal “purificado”, purgado de todas as imperfeições – inseriu-se fluidamente na propaganda racista. Na verdade, Olympia cita o modelo racista diversas vezes. Para Riefenstahl, porém, a idealização do corpo belo, esculpido pelo esporte, é primeiramente uma idealização estética. Seu filme Olympia mostra em destaque, por exemplo, o excepcional atleta Jesse Owens.”
O passado à condenou
Kötzing afirmou que estava convencido de que a função política dos filmes de propaganda do partido nazista e também de Olympia seja inseparável da estética específica, e em termos de documentário de Riefenstahl. “Com recursos financeiros incomensuráveis e no comando de diversas equipes de filmagem, a diretora desenvolveu uma nova forma de documentário: não uma reportagem sobre um acontecimento, mas sim uma equivalência cinematográfica do mesmo.
Esses filmes têm, em parte, funções distintas: Olympia apresenta uma “nova Alemanha” pretensamente cosmopolita e eficiente, enquanto os filmes das convenções do partido nazista glorificam Adolf Hitler e criam uma definição ideal de sua imagem. Isso inclui a relação com seus seguidores, ancorada na submissão. Riefenstahl foi a cineasta mais inovadora do regime nazista.” Sendo assim, para ele, o dever é entender os aspectos políticos e estéticos de sua obra como uma coisa só. Pode-se dizer que a artista Leni Riefenstahl criou o que a pessoa Leni Riefenstahl sempre negou depois de 1945.
A estratégia de defesa de Riefenstahl sempre foi a de acentuar sua inocência pessoal, isso desde os primeiros interrogatórios feitos pelas Forças Armadas norte-americanas. Ao mesmo tempo, ela negava ter tido um contato estreito com o regime nazista e apontava os documentos que a recriminavam como falsificações, pondo-se na posição de artista colocada injustamente no paredão. Além disso, rechaçava perguntas a respeito de sua condição de eventual beneficiária do regime, cuja carreira só teria sido de fato impulsionada pelos filmes nazistas e pelos fomentos generosos que os nazistas lhe concederam.
Na sua visão, não ser considerada juridicamente culpada significava obviamente ao mesmo tempo também não ter que se repreender em absolutamente nada nessa questão. Uma espécie de exame moral, de questionamento de sua conduta no sentido de averiguar possíveis envolvimentos ou falhas, parece nunca ter sido cogitado por ela. Sobretudo essa ausência de toda e qualquer autoavaliação crítica marcou negativamente sua imagem.
Em todo caso, a forma peculiar dos filmes de Riefenstahl, sua importância estética para o documentário e para a propaganda, foi reconhecida mais cedo e de maneira mais clara fora da Alemanha. Isso, diga-se de passagem, tanto por parte de documentaristas quanto de diretores de filmes de ficção. Foram estes últimos inclusive os que mais aprenderam com as encenações de Riefenstahl, tendo, por exemplo, citado ocasionalmente suas obras, como o fez George Lucas em Guerra das estrelas (1977).
Na Alemanha, pelo contrário, a controvérsia sobre a pessoa Riefenstahl dominou as discussões sobre a diretora durante décadas, o que é compreensível, visto que a negação persistente por parte da cineasta de fatos incontestáveis acabou se transformando em escândalo. Suas memórias, devotadas única e exclusivamente ao culto da lenda em torno de si própria, geraram automaticamente críticas e correções.
Fim da vida
Perto dos seus 80 anos, Leni Riefenstahl começou a praticar fotografia submarina. Ela lançou um novo filme, intitulado Impressões Subaquáticas, um documentário da vida sob os mares, no seu centésimo aniversário em 2002. A despeito de seus polêmicos filmes de propaganda, Leni Riefenstahl é renomada na História do Cinema por ter desenvolvido novas estéticas em seus filmes, especialmente em relação a ângulos de câmera, enquadramentos, movimentos de massas e nus.
Ainda que a propaganda em seus filmes provoque rejeição por várias pessoas, a sua estética é indubitavelmente singular e é citada por vários outros cineastas. Leni celebrou seu 101º aniversário em um hotel em Feldafing, perto da sua casa e sua saúde se deteriorou rapidamente depois dessa data. Leni morreu enquanto dormia em 8 de setembro de 2003, em sua casa em Pöcking, na Alemanha, aos 101 anos. Em seu obituário, foi dito que Leni foi a última figura famosa da era nazista na Alemanha a morrer, foi sepultada no Waldfriedhof de Munique, Baviera na Alemanha.
Texto organizado por Gabriel Pinheiro
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