Baseado nos dez mandamentos da bíblia? Faz muito sentido, apesar dos criadores da mini-série, Krzysztof Kieślowski e Krzysztof Piesiewicz nunca terem de fato confirmado essa informação. Mas algo é certo, Decálogo é uma odisseia sobre as relações humanas e os desvios de caráter das pessoas, grande parte dos episódios se encaixa no mandamento correspondente e em muitas outras alegorias e passagens bíblicas.
A obra funciona como um filme de mais de 9 horas, dividido em dez episódios, os quais não têm nenhuma relação cronológica ou histórica um com outro no geral, além de compartilham diferentes pontos de vista sobre os desvirtuamentos da sociedade. Esqueça histórias épicas, efeitos especiais, trilhas sonoras marcantes ou enredos mirabolantes, pois o charme principal da série são sua frieza, textos crus, histórias simples e diretas sobre pessoas, em contextos que para certos espectadores podem ser sufocantes ou tristes.
Apesar de sua crueza, Decálogo apresenta muita simbologia e significados multilaterais, e a despeito do contexto, a Polônia do fim dos anos 1980, são situações aplicáveis a qualquer contexto histórico e social, afinal de contas, humanos são humanos em qualquer lugar do mundo e em qualquer época da história. Dadas estas razões, as películas contam também com o conhecimento de mundo e força para pensar do público.
Cada capítulo da série será comentado, sobre o tipo de comportamento ele retrata, de alguns pontos de vistas subjetivos de minha pessoa e se ele tem haver com os títulos traduzidos para o nosso amado português brasileiro – as versões em inglês também tiveram os títulos traduzidos de acordo com os dez mandamentos.
PODE CONTER SPOILERS
Capítulo 1 – Amar a Deus sobre todas as coisas
O primeiro episódio conta a tocante história de um professor universitário e seu filho, cuja relação entre eles é doce e repleta de ternura. O garoto tem sede de aprender, evidenciado pelos cálculos que faz na máquina do pai e conta ao mesmo com empolgação quando tem sucesso em algum. Tamanha essa gana pelo conhecimento que em determinado momento do episódio, o garoto questiona ao pai algo profundo sobre a morte, até aí nada de mais, crianças são curiosas mesmo, não fosse o fato do garoto ter corrido sobre um lago congelado, o gelo ter cedido e ele ter caído e morrido. Toda a empolgação do pai vai embora nos dias de luto pelo filho devido a perda e os diálogos também diminuem de forma drástica, como se o garoto fosse a alma de todo o episódio.
Este capítulo ter a ver com o este mandamento faz sentido. Em Gênesis 22:2, Deus pede a Abraão que sacrifique Isaac, seu único filho, e quando o homem o leva para a montanha que Deus ordenou, o mesmo diz não ser necessário pois tudo aquilo era para testar sua fé. Abraão era tão devoto ao “Homem lá de cima" – como diria a Xuxa – que resolveu obedece-lo, por mais absurdo que fosse o pedido. O Episódio 1 mostra que seria algo bizarro de se pensar caso o professor estivesse no lugar de Abraão, afinal, ele e seu pai tinham uma relação maravilhosa um com outro, tal qual que só a morte do menino fez com que a alegria dele, que parecia não ter fim, acabasse. Além do mais, na Bíblia, o conceito do amor a Deus vir em primeiro lugar a nível de sacrificar aquilo que você tem de mais valioso é lindo, mas ironicamente, quem sacrificou o filho do cientista foi o próprio Deus e mesmo assim o amor que o primeiro deve por Ele, em tese, deveria ser maior do que o que tinha por seu finado filho.
Capítulo 2 – Não tomarás o nome de Deus em vão
Desta vez somos apresentados a uma mulher chamada Dorota, a qual tem dois problemas: um é que seu marido está no hospital morrendo de um câncer terminal e o outro é que durante a doença do cônjuge, ela teve um caso extraconjugal, do qual ficou grávida. Daí surgiu a seguinte incógnita: se o marido sobrevivesse, ela faria um aborto, caso o homem viesse a óbito, ela teria a criança. Dizendo isso ao seu médico, que tanto fez seu teste de gravidez como está cuidando de seu marido, o mesmo não aprova nem um pouco a ideia, pois mesmo que fosse uma gravidez não planejada, ainda era uma vida. Concomitante a isto, seu marido ia piorando e chegando mais próximo da morte, o que representaria o nascimento do bebê.
Este episódio também tem relação com o mandamento, visto que muito se discute da possibilidade da personagem estar brincando de ser Deus, decidindo se tal vida vai existir ou não, definindo algo que em tese era para ser definido por Este, que sabe de todas as coisas e é pai do destino, o que leva a um pecado capital, a soberba, o pensamento de que você é superior que o próprio Deus e portanto pode definir o destino das pessoas, além da luxúria, da mulher não poder se ver em abstinência sexual por conta do marido convalescente e ir para cama com outro homem, tamanha lascívia e distração causaram até mesmo uma gravidez indesejada. Este episódio ainda pode ter relação com o primeiro, visto que aborda a paternidade, mesmo que a criança do segundo capítulo não tenha nascido e dê uma incógnita em seu final sem deixar claro se o feto de fato nasceu ou não.
Capítulo 3 - Santificar domingos e festas
É véspera de natal, uma mulher está a procura de seu marido desaparecido e para isso, conta com um antigo ficante para ajudar na busca. A impressão que dá é de que na verdade a mulher foi deixando de ligar para o marido desaparecido e passou a aproveitar o momento com um antigo amante, pois é visível que ela é uma pessoa muito solitária e precisa desabafar suas angústias e pensamentos, além de passar um dia com alguém que a ouça e lhe faça companhia, mesmo que esta pessoa seja o homem que ficou enterrado no passado na mente da moça.
O episódio tem relação com este mandamento no sentido de que os protagonistas fazem esforço para procurar o homem perdido e em plena virada para o natal, feriado santo, que em tese seria um dia para descansar e não trabalhar.
Capítulo 4 – Honrar pai e mãe
Uma moça de cerca de vinte anos tem uma relação muito afetuosa com o seu pai, similar ao garoto e o pai do primeiro episódio. Ela é órfã de mãe, o que faz com que o afeto pelo pai seja mais acentuado ainda. Mas no meio do episódio as coisas mudam, a jovem vê uma carta a qual deveria abrir apenas quando seu patrono morresse, contribuindo para o mistério da trama e intensificando o plot twist a seguir: ela descobre que o homem o qual abraça todos os dias e conta seus segredos não é seu verdadeiro pai, o que a deixa inconformada e furiosa com este que o criou desde pequena.
O quarto capítulo mostra como as relações sociais funcionam, basta chamar alguém de pai, criar laços afetivos fortíssimos que este tomará tal forma, mesmo que o homem em questão não seja de fato seu pai biológico, basta ver em uma raiz familiar que durou vinte anos, claro que de forma transparente pois a menina descobriu a verdade tempos depois. E quanto ao mandamento? O pai adotivo realmente tinha um carinho muito especial por sua filha, logo, ela honrava o pai, mas pensando de modo reverso, a tal descoberta foi uma desonra à filha, que se sentiu enganada e mesmo assim, segundo a bíblia, ela não poderia confrontar o pai, pois este é a pessoa a quem ela deve respeito e reverência, o que me faz pensar no primeiro episódio, pois o homem que havia perdido o filho ainda devia respeito à seu pai supremo, Deus, fosse o que fosse.
Indo mais além, o episódio coincide com uma passagem bíblica, Mateus 18:22, onde Jesus responde à Pedro sobre o quanto deve perdoar, dizendo “Não te digo até sete vezes, mas setenta vezes sete", que quer dizer que deve-se perdoar sempre, o que é aplicável nesta situação, já que para a menina, o perdão ao pai é uma questão difícil de resolver.
Capítulo 5 – Não matarás
Um jovem desajustado de duas décadas de vida, com problemas mentais e familiares pega um táxi e desobedece o quinto mandamento, sendo o taxista o alvo. Em sua defesa, temos um advogado recém-formado que tem pouco jogo de cintura em sua dialética e é uma pessoa muito sentimental, sem a frieza necessária a um homem do direito.
Além de ser uma história que tem haver com o seu respectivo mandamento, mostrado de forma mais clara, o que chama a atenção são as consequências que um assassinato causou e as questões que ele levanta, além de todo o niilismo que permeia a obra. O rapaz é jovem, tem uma família desestruturada, uma casa em péssimas condições, possivelmente não tem a mente saudável, visto que ele enforcou o taxista de forma absurdamente fria e sem motivo, o que denota certo grau de transtornos antissociais e o sentimento niilista de não ter nada a perder e de fazer as coisas que o instinto mandar, uma vez que, para esta vertente filosófica, a vida não tem sentido algum.
O advogado é inexperiente em sua área mas quem sabe o motivo de ter perdido o caso não seja puro descaso do governo com a pobreza e a sanidade mental das pessoas, isto é, prender um pobre por não ter nada a perder? Além de tudo isso, tem-se a questão da pena de morte, se ela deve ser aplicada do jeito que foi ou se uma reabilitação mental do personagem não seria outro meio. E o mais curioso de tudo foi o jovem ter morrido da mesma forma a qual matou o taxista, como se os produtores quisessem fazer referência ao antigo testamento da bíblia, onde era aplicada a norma do “olho por olho, dente por dente" e do “aqui se faz, aqui se paga".
Capítulo 6 – Não pecarás contra a castidade
Este é o episódio favorito daqueles que vos escreve e possivelmente o que envelheceu melhor, principalmente por abordar o amor e o sexo de forma mais ousada em seus diálogos e sutilmente falar sobre o relacionamento aberto, forma de “amor" muito praticada pelos jovens de hoje.
Um jovem tímido, também no início de seus vinte anos, vigia uma moça mais velha de um apartamento vizinho todos os dias através de um binóculo. Durante estes dias de voyeurismo, além de observar sua beleza, percebe-se que ela costuma ter vários amantes, um por noite. Em um momento do episódio, ele revela que a ama, ela diz que o amor não existe mas mesmo assim os dois saem. Depois, o moço revela a ela suas manias estranhas e para a sua surpresa, não foi mal interpretado, pelo contrário, enquanto o rapaz estava todo apaixonado, sua paquera levou isso de forma absolutamente fria e vendo o jovem apenas como uma oportunidade de satisfazer um prazer carnal e até mesmo ter uma relação aberta, se aproveitando de sua paixão. Nosso herói fica muito deprimido, chegando até a se cortar e parar no hospital.
Partindo do acontecimento citado acima, a moça faz de tudo para visitar o rapaz, para ver como ele está e no fim do episódio, quem fica indiferente é ele, dizendo que já não a observa mais pela janela. É como se os papéis se invertessem, isto é, a moça passou a agir como uma pessoa apaixonada, indo atrás e se preocupando, enquanto o rapaz sequer emitiu um suspiro ao ver a moça depois de certo tempo. Ou ela simplesmente sentiu um profundo remorso em ter causado aquilo ao rapaz.
E sim, o episódio tem haver com o mandamento. O rapaz não peca contra a castidade, ele nem chega a ter relações sexuais com a sua paquera, mas ele a deseja tanto que a observa todos os dias, o que chega a ser um pecado, visto que ele revelou até ter se masturbado com sua imagem, isto é, de qualquer maneira, o pecado da luxúria é cometido, mesmo que ele não tenha desobedecido o mandamento, ao contrário da moça, que o desobedece basicamente todos os dias e com vários amantes.
Capítulo 7 - Não roubarás
Uma moça teve um caso com um professor no ensino médio, de onde nasceu uma filha, mas acontece que a menina foi deixada com sua avó, que ela acredita ser sua mãe, sendo que a biológica se passa por irmã. Depois de um tempo, a mãe verdadeira decide que quer cuidar da filha, porém a avó não quer entregar a menina de jeito nenhum, o que gera uma verdadeira disputa de ego e emoção entre as duas. A criança, por sua vez, faz pouco caso de sua mãe biológica, principalmente pelas vezes que esta pediu para sua filha a chamar de mãe e o pedido não ter sido atendido.
Primeiro que a mãe verdadeira deixou a criança com sua avó e a fez acreditar que esta era sua verdadeira progenitora e dar este choque de realidade em uma criança não é fácil, levou tempo para ela acostumar com sua mãe adotiva e não seria fácil aceitar uma estranha, ou “irmã”, como sua mãe de verdade e por isso a menininha faz vista grossa às suas raízes e prefere ficar com sua avó, isto é, com uma mãe adotiva, tamanho o laço social bem amarrado das duas. O fim deste episódio, quando a mãe de verdade vai embora de trem sozinha, a criança corre atrás do veículo e vê ele partindo, algo muito simbólico, pois é curioso a criança não dar a mínima para a mãe de verdade e correr atrás dela, dando uma sensação de curiosidade na criança, do tipo para onde minha irmã vai, ou um leve resquício de remorso que só faz cócegas, denotando o quanto a série usa bem o sugestivo.
Esse episódio não tem muito haver com o mandamento correspondente mas ao mesmo tempo tem, uma vez que não há nada relacionado com roubo, algo que chegue próximo é o roubo da criança da avó por parte da mãe biológica, o que tecnicamente não o é se considerarmos o fato de que esta mãe está tomando a filha que ela gerou, ao mesmo tempo que ela está pegando algo que socialmente não está na guarda dela e sim de sua mãe, outra brincadeira que o roteiro faz com a ambiguidade.
E mais, ainda pode-se ver o contraponto entre um progenitor e um pai adotivo, o que coincide com o quarto episódio.
Capítulo 8 - Não levantarás falso testemunho
Esse capítulo é ótimo, mas de longe o mais esquecível. Se passa em uma sala de universidade. Dentre sugestões de questões filosóficas em meio a aula, temos uma questão proposta por um aluno a qual ele simplesmente conta o enredo todo do capítulo 2, uma das poucas referências entre os episódios e logo depois, outra aluna propõe uma questão hipotética e descobrimos que na verdade tratava-se de uma história verídica e a moça é uma judia que estava tendo aula com uma professora de Ética que há 45 anos negara-lhe ajuda durante a Segunda Guerra Mundial.
Qual a relação deste episódio com o mandamento em questão? A professora é católica e não poderia cometer falso testemunho. Ela obedeceu um mandamento bíblico e negou ajuda a uma judia que estava vivendo um inferno, isto é, obedeceu um mandamento em detrimento de outro, e o novo testamento prega o altruísmo e ajudar o próximo. Mas e se tratando de um cristão fervoroso? Será que valeria a pena esconder um judeu das autoridades, ou seja, mentir e omitir só para salvá-lo? Para muitos a questão é muito fácil de responder, claro que salvariam a mulher em perigo, mas pode ser que a professora também pudesse correr um perigo ainda maior se tivesse um judeu infiltrado, podendo ser descoberta, o que resultaria na morte da sua futura aluna.
Capítulo 9 - Não desejarás a mulher do próximo
Um homem casado está sofrendo de impotência sexual e resolve ir ao terapeuta. O médico sugere a ele que saia com outras mulheres. Após a sessão, ele revela a sua esposa seu problema e a sugestão do médico, o que faz com que o casamento se desestabilize. Por ironia do destino, quem acaba traindo é a esposa, mais especificamente com um rapaz jovem, o que piora ainda mais a situação do casório.
É curioso pensar que a relação que cada episódio tem com o mandamento correspondente não aparece de forma óbvia e sempre vêm repletos de ironias. Por exemplo, neste capítulo, quem deseja a mulher do próximo é o rapaz novo que se envolve com a esposa do protagonista. Abstraindo mais, uma referência ao penúltimo verso da famosa oração, o Pai nosso, “não nos deixe cair em tentação”, visto que o psicólogo, que era para ser um profissional da saúde e um mentor sensato, tentou persuadir o protagonista a cair na tentação do adultério, e o que é mais paradoxal, em detrimento de um casamento mais saudável.
Capítulo 10 - Não cobiçarás as coisas alheias
Um astro do rock perde o pai, um grande filatelista. Mexendo em sua vasta coleção de selos, ele e seu irmão descobrem uma muito valiosa, a qual falta apenas um selo para ser completada. Eles descobrem um senhor que tem o tal selo, e têm que dar uma outra coleção em troca deste único. Descobrimos que o preço pago pela raridade é muito mais caro que parece, isto é, em troca de um selo que faria uma coleção valiosa valer ainda mais, eles conseguem o artefato, mas têm a casa toda saqueada.
Além de possivelmente ser o episódio mais paradoxal, é com certeza o mais otimista, utilizando diálogos com muito bom humor e nem é preciso dizer que a relação com o mandamento correspondente é válida. De forma mais direta, vemos os irmãos perderem tudo por cobiçarem uma posse alheia que completaria uma coleção de seu falecido pai e faria com que esta fosse ainda mais valiosa, o que entra em sincronia com o pecado da avareza, isto é, dar um valor exacerbado às coisas materiais. Eles conseguiram o tal selo, mas o preço disso foi o roubo de toda a sua casa pelo próprio dono do item, no melhor estilo “quem tudo quer, nada tem" ou “dar com uma mão, tirar com a outra".
O final do episódio, e da série, logicamente, é o mais otimista possível, visto que Decálogo no geral tem um tom denso e reflexivo. Sim, eles perderam tudo, mas ainda mantiveram um sorriso no rosto e tiraram sarro da situação, o que entra em harmonia com um dos dons divinos, a humildade, e também a gratidão, isto é, ter pouco mas ainda sim ser grato.
Concluindo
Decálogo é um mergulho profundo à fragilidade humana e um retrato de como somos falhos e contraditórios. Através de dez episódios, cada um com uma fotografia única que anda junto com a trama correspondente, muitos paradoxos e simbolismos, tanto põe o espectador para refletir como o encanta, mostrando que a sociedade ocidental tem como base a moral cristã, o que também é denotado, por exemplo, nas relações entre pais e filhos, isto é, uma comparação com o dogma de que Deus é pai, onde na maioria das vezes ocorrem conflitos, somado à principal demonstração de inteligência da série, em outras palavras, na maior parte dos episódios, quem desobedece os mandamentos da Bíblia não são os protagonistas e quando o fazem, eles são punidos quase como se fosse por uma autoridade sobrenatural que os penaliza de forma debochada e com uma ironia que contrasta com seus pecados.
Se Decálogo encantou a mim que sou ateu, porque não encantaria a você?
Escrito por André Germano
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